Delta causa crise em Mauriti.

(Reportagem publicada no jornal “Estado de S.Paulo” desta 2ª feira)


O escândalo da máfia dos caça-níqueis abalou Mauriti, uma cidade cearense de 45 mil moradores, a quase 500 quilômetros de Fortaleza. Nesse município do sertão do Cariri fica um dos principais canteiros da transposição das águas do Rio São Francisco e da Delta, construtora citada no esquema do contraventor Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira.


Wilson Pedrosa/AE
Animais andam livremente onde antes era o canteiro de obras da Delta

Há três anos, a empresa iniciou a obra de um trecho de 39 quilômetros de canal e passou a dar o ritmo do comércio, da política e até da agricultura local. Quando o escândalo veio à tona, no começo de abril, a construtora demitiu 80% dos seus mil operários no município, encostou os 145 caminhões, escavadeiras e tratores e rompeu contrato com as empresas agregadas, que saíram da cidade sem pagar as contas nas oficinas, lojas de autopeças e imobiliárias familiares.

Por causa do calote, a Delta e suas agregadas estão com nome sujo na feira da praça central, nas farmácias, nas mercearias e no setor mecânico. Vendas para diretores das empresas, só à vista. Na Autopeças Mauriti, o dono proibiu a entrada dos homens do consórcio. Ericon Gomes de Lima, o proprietário, diz que sofreu um calote de R$ 27,6 mil, o que o teria obrigado a demitir um dos quatro funcionários da casa.
"Não foi uma surpresa ver a Delta envolvida nessa história na TV. Eu já tinha recebido cano no ano passado. Voltei a dar bobeira e negociar. Agora, o consórcio me deu um calote de R$ 27 mil", relata Lima. "Todas as agregadas chegavam para comprar em nome da Delta, que se nega a nos ajudar a receber. É um absurdo porque foi a Delta que trouxe para cá esse comboio de ladrões", diz. "Se meu funcionário rouba, eu sou o culpado."

Tratores
Antes da chegada da Delta a Mauriti, o mecânico João Alberto Rodrigues Silva, o Dedé do Crente, e o filho João viviam do conserto da patrola da prefeitura e de máquinas dos poucos fazendeiros da região. Nos últimos anos, pai e filho passaram a consertar 35 tratores por mês. A oficina São José se estendeu para a rua, para atender à nova demanda.
Desde a interrupção das obras do canteiro do Lote 6, a 20 quilômetros do centro, o serviço na oficina se reduziu. As empresas agregadas deram calote. Dedé e o filho ainda tentaram prender um trator para garantir o pagamento, mas a empresa pressionou e teve de liberar a máquina. "Vou começar tudo de novo", lamenta Dedé. João vive a mesma angústia do pai. "O cabra ficou sem as pernas", diz.
A oficina amarga um prejuízo de R$ 10,3 mil, segundo os donos. João afirma que, na cidade, logo que o escândalo estourou, ninguém lamentou pela Delta. "Pela construtora, a gente não está achando ruim, não. A nossa vontade é que uma outra empresa venha tocar a obra", ressalta.
Há um mês, um diretor do consórcio pediu a João e a Dedé para intermediar o aluguel de cinco casas na cidade. Pai e filho bateram nas portas dos vizinhos, mas, diferentemente de anos anteriores, os moradores só aceitaram contratos com pagamento à vista e de curta temporada. "Eu respondi para os diretores da Delta que a empresa não tem mais nome limpo e só terá aluguel com dinheiro na mão", conta Dedé.

Em Quixabinha, povoado mais próximo do canteiro da Delta, a queda nas vendas chega a 80%. "Eu faturava R$ 100 por dia, mas agora não tiro R$ 20", afirma Jacinta Dantas, dona de uma pequena mercearia. O agricultor João Barbosa, que vende feijão e milho para a comerciante, diz que três filhos e dois genros perderam o emprego que tinham no canteiro. "Um bocado de filho meu foi cortado. O Chico, o Zilvan e o Erinaldo e os meus genros Valdério e Dodô não trabalham mais."
 O prefeito Isaac Gomes Junior (PT) mobilizou, nos últimos dias, colegas dos municípios da região leste do Cariri para cobrar da gerência do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) informações claras sobre as obras do canal do São Francisco. Ele pretende ir junto com outros prefeitos em breve ao Ministério do Planejamento. "Precisamos de respostas mais concretas para tranquilizar as pessoas", afirma ele.

Desde abril, a prefeitura de Mauriti (CE) virou centro de peregrinação de demitidos das obras do consórcio da transposição das águas do Rio São Francisco, que repassou R$ 1 milhão em impostos, no ano passado, para a prefeitura. Nas primeiras horas da manhã, trabalhadores chegam para pedir passagem de volta a seus Estados, bilhetes para São Paulo, cestas básicas e remédios. O prefeito diz que preferia perder os impostos do que as ofertas de trabalho. "O impacto é grande não apenas na economia, mas especialmente na área social", afirma. "Não tenho otimismo de resolver o problema das pessoas sem o retorno das obras."

Até Hospital pode fechar

 Sem dinheiro na praça, o hospital filantrópico da cidade que dependia de contribuições corre risco de fechar. Dos 135 leitos, 80 ainda estão em funcionamento. A chegada de trabalhadores de fora só aumentou a demanda do hospital. O prefeito Isaac Gomes avalia que as invasões e saques no comércio e escolas de agricultores famintos em tempos de seca parecem ser imagens do passado. "Não podemos deixar de enaltecer os avanços ocorridos nos últimos anos, mas a figura do boia-fria é uma realidade visível", observa o prefeito.
O canteiro da Delta em Mauriti ainda não é alvo de investigação. O Ministério Público Federal, no Ceará, já avalia possíveis irregularidades cometidas pela empresa nas obras de asfaltamento e recuperação das BRs 020, 222 e 116 e na construção das pontes sobre os Rios Jaguaribe e Cocó. As primeiras conclusões indicam que a construtora causou um prejuízo de pelo menos R$ 5 milhões apenas em fraudes nas licitações das rodovias federais que cortam o Estado.

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