Descaso, incompetência administrativa e
suspeita de um novo esquema de corrupção fizeram com que o Ministério da
Saúde não desse uso a 13,7 mil litros de plasma sanguíneo avaliados em
US$ 1,6 milhão
Claudio Dantas Sequeira
TRÊS MINISTROS ESCONDERAM O DESPERDÍCIO
Humberto Costa, José Gomes Temporão e Alexandre Padilha
(da esq. para a dir.): sangue jogado fora
A cada ano, o Ministério da Saúde gasta milhões em campanhas de
incentivo à doação de sangue. Boa parte dessas doações é industrializada
fora do País e retorna como hemoderivados, medicamentos essenciais no
tratamento de hemofílicos. A matéria-prima desse processo é o plasma
sanguíneo, um insumo tão cobiçado que um litro chega a custar US$ 120 no
mercado internacional – tanto quanto um barril de petróleo. O
Ministério da Saúde esconde em um depósito no Distrito Federal um
carregamento de 55 mil bolsas de plasma humano, avaliado em US$ 1,6
milhão, mas cuja validade está vencida há pelo menos cinco anos. O
segredo, que pode causar estragos às pretensões políticas dos
ex-ministros da Saúde Humberto Costa e José Gomes Temporão, além do
atual ministro, Alexandre Padilha, está trancado a 50 graus negativos
numa câmara frigorífica vigiada por seguranças armados.
Essa espécie de “túmulo do sangue”, como funcionários do ministério
chamam o local, é apenas o fio de um novelo que está sendo deslindado em
diferentes investigações pelo Ministério Público e pelo Tribunal de
Contas da União. Os processos, obtidos com exclusividade por ISTOÉ,
atestam desvios recorrentes na produção e estocagem do plasma coletado e
lançam suspeitas sobre a existência de uma nova modalidade de máfia dos
vampiros, com conexões até na França. Os lotes vencidos foram coletados
em 41 hemocentros e bancos de sangue de diversos Estados em 2003 e
2004, justamente o ano em que estourou o escândalo do comércio ilegal de
hemoderivados, desbaratado pela Polícia Federal na Operação Vampiro.
Então ministro, Costa chegou a ser indiciado por suspeita de
participação no esquema. Em março de 2010, foi absolvido pela Justiça e
conseguiu ser eleito senador. Agora, apenas dois anos depois, está
dedicado a virar prefeito do Recife, numa estratégia para chegar ao
governo de Pernambuco em 2014.
DESCASO
O depósito que guarda as bolsas estragadas fica na cidade-satélite
de Águas Claras. Na foto maior, o estoque inadequado do produto
O ex-ministro terá de explicar aos promotores por que abandonou as 55
mil bolsas de sangue no depósito do ministério. Naquele momento, havia
duas empresas responsáveis pelo beneficiamento do plasma: a suíça
Octapharma e a francesa LFB (Laboratoire Français Du Fractionnement et
des Biotechnologies S/A). Citadas no inquérito da Operação Vampiro,
nenhuma delas se encarregou dos lotes. À ISTOÉ, Costa admitiu que sabia
do carregamento estocado e impetrou recurso junto ao Tribunal Regional
Federal da 1ª Região “a fim de dar aproveitamento ao produto.” O
recurso, segundo ele, foi negado sob o argumento de que sua liberação
poderia implicar grave prejuízo ao erário. O hoje senador diz que não
acompanhou os desdobramentos do caso.
Antes de deixar o cargo em 2005, Costa criou a Coordenação-Geral de
Sangue e Hemoderivados (CGSH) e mandou fazer nova licitação, engavetada
nas gestões-tampão dos peemedebistas Saraiva Felipe e Agenor Álvares e
retomada apenas no final de 2007, por José Gomes Temporão. A licitação
lançada por Temporão foi vencida pela francesa LFB e o contrato previa o
fornecimento de hemoderivados e a transferência da tecnologia de
fracionamento do plasma para a Hemobrás, estatal criada por Costa em
2004 e que até hoje não saiu do papel. “Contratamos a empresa numa
licitação transparente”, afirma Temporão, que diz desconhecer o
carregamento de plasma vencido.
Em ofício encaminhado ao MP sobre o caso, o coordenador-geral de
sangue e hemoderivados do Ministério da Saúde, Guilherme Genovez, alega
que, quando a LFB foi contratada, o plasma estocado em Brasília “já se
encontrava vencido, não sendo viável a sua utilização e recolhimento no
escopo do objeto do contrato”. Genovez se referia ao uso na produção dos
chamados fatores 8 e 9 para o tratamento de hemofílicos. Como são mais
sensíveis, esses produtos devem ser aproveitados com o plasma mais
fresco. Entretanto, mesmo vencido esse prazo, ainda seria possível
processá-lo para a obtenção de imunoglobulina e albumina, de uso
cirúrgico.
O Ministério da Saúde garante que negociou com a LFB um aditivo
contratual, que só seria assinado em 2009. Mas, com a demora, o que
restava do material também perdeu a validade. Estranhamente, a LFB disse
à ISTOÉ que “desconhece o assunto”. No documento enviado ao MP,
Guilherme Genovez informa que o descarte do material sofreu impedimentos
sanitários nos anos seguintes e voltou a ser debatido em 2011, já na
gestão do ministro Alexandre Padilha. Mas acrescenta que não há ainda
cronograma nem método para o descarte. Ao ser questionado pela
reportagem, Padilha informou por meio da assessoria de imprensa que já
está com edital pronto para escolher em 30 dias a empresa que fará o
descarte do material.
O problema com os hemoderivados não se restringe ao caso do depósito
em Brasília. ISTOÉ obteve com exclusividade cópia de um relatório de
auditoria feita por técnicos do Ministério da Saúde nas instalações da
LFB, em Lille e Lês Ulis, Paris. Os técnicos ouviram dos dirigentes da
empresa explicações controversas e relataram uma série de
irregularidades. O documento está na mesa de Padilha desde maio.Uma das
mais graves denúncias diz respeito a uma carga de mais de meia tonelada
de produtos intermediários de hemoderivados que foi estocada, sem uso. O
procedimento nem sequer foi notificado ao governo brasileiro. São 673
quilos de produtos semiacabados com prazo de validade expirado cujo
destino não foi informado ao Ministério da Saúde, como prevê o contrato
entre o governo e a LFB. Outro lote ainda maior, com quase 1,2 tonelada
de princípio ativo para a produção de hemoderivados, também se
encontrava estocado, em regime de quarentena e prazo de validade próximo
de expirar. Uma terceira carga de 1,5 tonelada foi totalmente perdida
por desvios de qualidade durante o processo produtivo.
Surpreendeu os técnicos o fato de a LFB usar na produção do fator 9
(aquele para o tratamento de hemofílicos) lotes de 2,8 mil litros num
equipamento com capacidade máxima de 2,2 mil litros, “implicando com
isso a perda de aproximadamente um lote de produto acabado para cada
quatro descongelamentos de plasma”. Os técnicos do ministério calcularam
o descarte de plasma em aproximadamente 30%, quase o dobro do limite de
15%. Além dos descartes irregulares, a auditoria atestou divergências
entre o rendimento do plasma declarado pela LFB e o apurado pelos
técnicos, em alguns casos de até 50% a menos. O ministério diz que
solicitou à empresa indenização dos produtos e ameaçou com multas e
sanções.
Para o procurador do TCU Marinus Marsico, as informações colhidas pela
auditoria do Ministério da Saúde são “extremamente graves”. Na
sexta-feira 31, ele entrou com pedido de investigação complementar na
corte, no qual também alerta sobre a assinatura pelo governo de aditivos
suspeitos aos contratos com a LFB. Segundo o procurador, pode ter
havido burla à lei de licitações e até a “execução concomitante de dois
contratos com objetos iguais”, a fim de ocultar alguma irregularidade ou
pagamento em duplicidade. A “irregularidade” a que Marinus se refere,
embora não expressamente, teria a ver com suspeitas de existência de um
mercado negro de plasma, que se aproveita da falta de controle
governamental. Por ora, não há provas desse comércio ilegal. Indícios
claros aparecem em trecho do relatório da auditoria, no qual técnicos
questionam o desaparecimento de princípios ativos de hemoderivados. Na
reunião que discutiu a auditoria, a desconfiança era tanta que o diretor
de qualidade da LFB, Robert Vedeguer, precisou defender a honra de seus
funcionários. “Eu gostaria de convencer o Ministério da Saúde da
honestidade dos técnicos da LFB”, disse. Por meio da assessoria de
imprensa, a LFB garantiu que “não há possibilidade de uso irregular ou
desvio de destinação do plasma enviado à França”.
As suspeitas de desvio de plasma para o mercado negro estão sendo
investigadas pelo promotor de Justiça do Distrito Federal, Moacyr Rey
Filho. As pistas foram dadas pelo médico Crescêncio Antunes da Silveira
Neto, ex-secretário de Gestão Participativa do Ministério da Saúde e
ex-conselheiro da Hemobrás, na gestão Temporão. Em depoimento, Antunes
disse que “suspeita que os desvios ocorram em vários Estados e em número
maior no Rio de Janeiro, em São Paulo e na Bahia”. Para sustentar sua
tese, ele apresentou planilha com registros de descarte exagerado do
Hemocentro de Brasília. Seja como for, só uma apuração aprofundada
poderá determinar se todo esse desperdício de sangue é o sintoma mais
evidente da existência de uma nova máfia no setor ou apenas resultado do
descaso e da incompetência.
Fonte: Isto é independente
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