O Chipre é uma ilha dividida em dois países, a parte oeste reconhecida por quase o mundo inteiro e que faz parte da União Europeia, e a parte leste que é reconhecida apenas pela Turquia. Christian Dunker, colunista de Tilt, esteve recentemente no Chipre e usou essa curiosa peculiaridade local para escrever sobre identidade e pessoas trans. Quem vive de um lado do Chipre resiste a reconhecer o outro lado. A resistência popular e espontânea consiste simplesmente em recusar-se a admitir a existência do outro. Todos nós temos uma parte estrangeira que Freud chamou de unheimlich, justamente porque sem ela não conseguimos penar direito o conceito de familiaridade. Trata-se justamente de como tratamos este estrangeiro que nos habita. É curioso pensar que muita gente passa a vida com ódio e medo do "outro lado", de si mesmos. E podemos pensar que este "outro lado" é o lado do nosso vizinho, tão parecido e tão diferente de nós, que Freud descreveu esta briga permanente entre cães e gatos, dando como exemplo a desavença histórica entre portugueses e espanhóis —que se parecem tanto e que dividem seu destino de desavenças— com a expressão "narcisismo das pequenas diferenças". Mas nem toda diferença é pequena. Existem em nós as diferenças flutuantes, aquelas sobre as quais podemos criar um "solo comum". Existem ainda as diferenças menos fortes que no fundo são apenas diversidades, que têm um "solo comum", que não está sendo reconhecido. As discussões sobre o estatuto de nossa diferença ao outro se aplicam direta e reflexivamente ao estatuto de nossa relação a si. Inclusive, e no limite, a negação da existência de um outro que "fala em nós", mais além de nossa "língua dominante", constitui um exemplo prático de como nossa relação com o inconsciente não envolve apenas uma discussão epistemológica sobre seu estatuto de existência e cognoscência, mas um estatuto ético sobre como lidamos com nosso "lado de lá". Isso pode ajudar a responder uma pergunta frequente em torno de por que nos preocupamos tanto com a experiência transexual, ainda que ela represente uma parte pequena da população. A resposta é que mesmo que a questão trans afete radicalmente aqueles que têm a experiência radical de estar em uma identidade para a qual o corpo não lhe corresponde, ela tornou-se uma espécie de paradigma deste sofrimento que cresce em todos nós, ao qual me referi como inadequação, impostura ou impropriedade. Para alguns, afirmar que a diferença de gênero não é uma diferença irreversível, negociável ou essencial ofende sua política de identidade. Ou seja, se admitimos que é possível literalmente "passar para o outro lado", de acordo com a definição linguística da partícula "trans", e, em oposição a partícula "cis", que se refere "a ficar do mesmo lado", isso pode acontecer virtualmente "com qualquer pessoa". Sim. E este é ponto no qual a questão trans afeta a todos nós. Não porque sejam todos nós necessariamente dispostos a "passar para o outro lado", mas que essa diferença seja justamente não necessária nem impossível. Ora, o que não é necessário nem é impossível, mas "ainda assim é", corresponde a definição aristotélica do gênero lógico da contingência. Esta contingência "trans" é justamente universal e não patológica. |
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