Matéria do Globo Rural com os ferreiros de Potengi Cariri

A produção de ferramentas artesanais em Potengi -CE, cidade irmã Caririense de Barro 16.08.2009






Você vai ver como são produzidas as ferramentas artesanais usadas no dia-a-dia dos agricultores.
Cada profissional tem as suas ferramentas. Para o repórter é o papel, a caneta, o microfone.
Você vai ver como são produzidas as ferramentas artesanais usadas no dia-a-dia dos agricultores.
O Globo Rural foi ao Ceará para conhecer os ferreiros de Potengi e, olha, nessa cidade é bateção para todo lado.
Para roçar o capim, roçadeira. Cortar madeira? Machado. Arrancar toco pequeno: chibanca que parece um machado de um lado e uma enxadinha de outro. "Agricultura a gente precisa da enxada, do machado, do cavador, da ossadeira e da foice", afirma o agricultor Manoel Marques da Silva.
Entre os pequenos produtores do Ceará, quase que nem precisa perguntar, a preferência é pelo produto artesanal. "Os ferreiros conhecidos, que compram aqui, nós dizemos logo: se o ferro não prestar, quebrar, se não for por extravagância, for defeito no ferro nós damos outro".
Em uma loja em Juazeiro do Norte, sul do estado, o dono, Ronaldo de Souza Santos, embrulha uma encomenda grande. "São 120 peças. Nós vendemos para os estados do Ceará, Maranhão, Piauí", conta o dono da loja de ferragens, Ronaldo de Souza Santos.
E, no estoque, ele tem mais mil peças. Todas fabricadas no mesmo município: Potengi. "Eu nunca vi como é feito, nunca fui lá".
Pois, então nós vamos mostrar. Para chegar em Potengi, são cerca de 100 quilômetros saindo de Juazeiro do Norte e passando ao lado da bela Chapada do Araripe.
Lá, encontramos Sr. Francisco Pereira, conhecido como 'Chicuta', e a mulher dele, dona Antônia, em plena colheita do arroz.
Sr. Chicuta ensina seus macetes para escolher a ferramenta de trabalho. "A primeira coisa é olhar o ervado, se é bem redondinho. Depois olha o gumo e depois o tempero".
As dicas que o Sr. Chicuta deu para escolher uma boa ferramenta têm peso diferente. Não porque ele seja melhor agricultor ou mais experiente, mas porque, além de agricultor, ele é ferreiro e dono de uma pequena oficina.
O ferreiro trabalha sempre em dupla, com um ajudante. Há três semanas, Sr. Chicuta começou a treinar o sobrinho, Antônio Pereira. "Eu estava estudando, mas parei para trabalhar também. Fui eu que quis porque tem muitos colegas meus que já terminaram os estudos, mas não tem serviço na cidade e eles apelam para oficina. Eu acho muito bonito, porque além de ser serviço é uma cultura".
Aos 21 anos, Antônio está animado com o emprego novo. Mas, para Sr. Chicuta, que começou quando o ajudante tinha apenas dois anos, este é só um ganha-pão. "Eu nem gostava, tinha muito medo de trabalhar, mas, depois, resolvi trabalhar por causa do ganho que não tem. Aqui a gente não tem emprego, o que tem mesmo é a oficina".

Hoje a dupla está produzindo foices. Gravuras e afrescos muito antigos mostram que pouco mudou em matéria de ferramentas e, no jeito de fazer também.
Parece que o ofício é exercido da mesma maneira desde os tempos da idade dos metais. Mas, pelo menos a matéria-prima, hoje, é mais fácil de encontrar: mola de caminhão. "Eles compram como sucata e a gente reaproveita. Eu estou pagando R$ 2,50. Em um quilo de material não dá para fazer nem uma foice".
Para aquecer o metal, os ferreiros usam carvão. Com muita atenção, ferreiro e ajudante vão moldando a foice.
Feito o ervado, é a vez da curva da foice. Por várias vezes a ferramenta será aquecida e martelada até adquirir o formato ideal.
Com a ferramenta já moldada, vem o que Sr. Chicuta considera a etapa mais importante: a têmpera. O aço, em alta temperatura, é mergulhado em óleo e rapidamente resfriado, num processo que aumenta a dureza do metal. "Esse aqui é o óleo que retira do carro. Eu gosto eu mesmo de temperar, se não é reclamação lá na frente".
Para finalizar, a ferramenta vai para o Esmeril onde ganha o corte. "Essa está pronto e boa. Eu vendo uma por R$ 10. A duração de uma ferramenta dessa vai depender do trabalhador. Se for preguiçoso dura até dez anos".
Apesar de afastada do centro da cidade, esta é a Vila Central. É aqui que fica a maioria das oficinas. Todas têm o nome formado por duas letras. Tem a 'JJ', 'FF', 'JÁ'. As mesmas duas letras, marcadas a ferro e fogo em cada ferramenta.
As 30 oficinas de Potengi empregam cerca de 100 trabalhadores e o prefeito da cidade, Samuel Carlos de Alencar, confirma a importância econômica dos ferreiros. "A atividade dos ferreiros, depois da agricultura, representa a maior fonte de renda para o nosso município e geração de empregos também".
Mas como tantas oficinas foram se concentrar em um só município? Quem responde é o ferreiro aposentado, Sr. Luiz Leite de Andrade, um dos pioneiros na atividade. "Eu comecei a bater ferro em 1953, quando eu tinha 20 anos. Os outros acharam que estava dando resultado e começaram também".
Hoje, aos 76 anos, Sr. Luiz Leite de Andrade está aposentado, mas não fechou a oficina, que fica logo em frente à sua casa. Ela é tocada por um dos oito filhos que criou. O velho ferreiro não esconde a saudade do antigo ofício. "Eu ainda hoje tenho vontade de bater ferro, mas num posso mais porque a mão, a perna não aguentar ficar em pé. Então eu tenho que ficar parado".
Hoje, quase 60 anos depois, a concorrência está maior e Raimundo de Andrade, filho do Sr. Luiz, reclama. "Tem muito ferreiro e tem as fábricas e ainda tem que concorrer com elas. O preço sai lá embaixo, não dá para ganhar nada".
Mas foi justamente o grande número de oficinas que fez a fama de Potengi, conhecida como a cidade dos ferreiros ou a cidade que não dorme.
4h da manhã e as batidas dos ferreiros já dominam a escuridão. Esta é uma das maiores oficinas da cidade. Chega a ter dez duplas malhando as bigornas ao mesmo tempo. "Assim, à noite já se torna quente. Aí durante o dia, o sol atrapalha muito. A quentura, estou todo suado a essa hora. Não tem como a gente trabalhar de dia", afirma o ferreiro Raimundo de Andrade.

Fábio Reinaldo da Silva, de 23 anos, é o ferreiro mais jovem. José Ismael Cavalcanti segue os passos do colega. Aos 20 anos, está aprendendo a profissão como ajudante, mas já tem as mãos calejadas. É dele a marreta mais pesada da oficina: cinco quilos e ele bate com vontade. "É para abrir o aço e ir mais rápido. Cansa mais um pouco, mas o serviço anda mais".
Mas não basta só força. É preciso haver também uma sintonia, um ritmo entre o martelo do ferreiro e a marreta do ajudante. "Se fosse o seu primeiro dia de trabalho, para explicar a batida do martelo e da mão eu bateria uma e você outra. Sempre você levantando um pouco mais a marreta. ", explica.
O ritmo do trabalho é muito importante porque aqui ninguém tem registro em carteira. Todos ganham por produção. "O mínimo é R$ 100 por semana trabalhando pouco, mas a gente trabalhando muito dá para tirar R$ 150 por semana".
José Alves, conhecido como 'Zé do Galo', é o dono da oficina. Ele mostra o estoque de peças já prontas. Saem do município cerca de 10 mil unidades por mês.
A variedade de foices e roçadeiras é grande. O formato depende do gosto do freguês. Em frente às oficinas, uma creche de nome, digamos, curioso porque 'Sossego' com essa vizinhança. É o jeito. A gente que é pobre tem que se aguentar com o que vier", diz uma senhora.
O avançar das horas aumenta o calor e o batuque dentro das oficinas. "Eu uso o protetor de ouvido porque o barulho demais. Os outros não gostam", diz o ferreiro, Francisco da Silva.
Além do barulho, os funcionários convivem com muito pó e colecionam cicatrizes. "No cascalho do ferro você vai batendo e vai voando e pregando aqui. Ai tem como tirar porque você está com a mão ocupada. Tem que agüentar", afirma o agricultor e ferreiro, Severino da Silva.
"Eu nunca me machuquei, mas esse machucado é frequente, nem se considera como machucado. Eu me feri uma vez cortando mola. Um pedaço de ferro voou e cortou assim", conta José Ismael Cavalcanti.

Apesar dos riscos, muitos trabalham de chinelos. Avental e luvas de proteção ficam pendurados. "O pessoal não usa equipamento de segurança porque é quente demais. Se pudesse trabalhar só de camiseta seria melhor ainda. Eu não tenho medo de me machucar", afirma o ferreiro, Cícero Pereira da Silva.

"O único equipamento de proteção que eu uso é o óculos. Teria que usar uma luva, mas não é confortável", diz o amolador José Firmino da Silva. "Eles já ganharam kits de avental, botinas, óculos. Eles dizem que trabalhar de óculos é difícil, que incomoda por causa do suor. Alguns, por exemplo, já se adaptaram com o avental".
Sobre o uso do equipamento de proteção nós ouvimos Francisco Oliveira, engenheiro de segurança do trabalho, em Fortaleza. "A responsabilidade de fornecer equipamento de proteção individual é sempre da empresa. O ideal seria que o empregador buscasse equipamentos de proteção mais confortáveis".

Depois do trabalho pesado, hora de ir para casa. Fábio encontra a mulher Thylene dando um jeito na sala antes de sair para escola.
Ela é professora de tarde e faz faculdade de letras à noite. O casal mora na casa dos pais de Fábio. Thylene, que tem Ferreira até no sobrenome, é casada com Fábio há três anos. "Nós não temos filhos, mas apareceu um agora", diz Fábio. "Eu estou grávida de dois meses", conta Thylene.
Orgulhosos, Fábio e Thylene nos mostram a casa de dois quartos que estão terminando de construir. "É uma vitória grande". "Não vamos parar por aqui, vamos continuar. A tendência é crescer. Nunca devemos pensar negativo, temos que pensar positivo e tocar o barco para frente".
Fábio, Sr. Chicuta são vitoriosos com o ofício de ferreiro, cuidam da família e prestam um serviço aos agricultores, numa atividade tão antiga quanto necessária. "Enquanto tiver agricultura vai ter ferreiro".

Apesar de duro, o ofício dos ferreiros garante vida digna a muita gente, mas a carreira é curta. Perto dos 50 anos, a maioria já sonha com uma atividade mais leve, com noites bem dormidas.

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